Slider

Enfermeira chefe da UTI do HSP relata os desafios na linha de frente contra a covid-19

Por Valquíria Carnaúba

A enfermeira intensivista Jane Alves está na linha de frente contra a covid-19 desde março de 2020, mas convive com situações limite da vida humana há quase 20 anos. Ela coordena atualmente uma equipe de mais de 300 profissionais na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Paulo, hospital universitário (HSP/HU Unifesp), que recebe inúmeros pacientes, por dia, vítimas do coronavírus e outras enfermidades.

Sua trajetória na área da saúde começou em 1997, com a graduação na Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp) - Campus São Paulo, seguida da residência em Enfermagem em Terapia Intensiva. Os anos de vivência em práticas relacionadas ao cuidar trouxeram um olhar maduro sobre as principais necessidades dos pacientes em situações críticas. Mas uma experiência específica é a sua maior referência nesse momento. “A equipe mais antiga, incluindo eu, passou pela epidemia de H1N1. Quando a covid-19 chegou, resgatamos aquela lembrança para enfrentar uma pandemia”. Assim, aliás, ela percebe o que está acontecendo: uma oportunidade ímpar de aprendizado.

Ela divide uma rotina puxada e, por vezes, angustiante, com a vida pessoal. E é esse equilíbrio que a mantém serena. As horas dedicadas aos pais, à filha de 24 anos, à meditação, ao crossfit e à busca de conhecimentos pautados na ciência compõem sua fórmula ideal para o autocontrole e o equilíbrio emocional. Conversamos com Alves, que contou um pouco sobre a atuação na linha de frente na UTI e suas percepções, como profissional de saúde e cidadã, diante de um patógeno que ainda desafia a humanidade.

jane alves
Jane Alves atualmente coordena uma equipe de mais de 300 profissionais na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Paulo (Foto: Alex Reipert)

Quando a pandemia chegou de fato, em março de 2020, você se sentiu pronta para encará-la?

J.A. No início, foi menos difícil do que imaginávamos. Algumas pessoas que trabalham aqui já passaram pela experiência da epidemia de H1N1, há alguns anos, por isso pudemos resgatar essa experiência para enfrentar a pandemia desse momento. Isso ajudou a manter a coesão do grupo, o envolvimento. Apesar de estarmos com muito medo, continuamos buscando novas informações e estudos científicos. Além disso, a alta gestão institucional do nosso hospital, a diretoria de Enfermagem e a coordenação médica foram muito participativas. Compramos a briga e fomos em frente! Eram a princípio 35 leitos de UTI, ampliamos mês após mês até chegarmos a 81 leitos ativos, sendo 73 leitos para atender somente pacientes com diagnósticos de covid, fechando julho com seis UTIs sob nossa coordenação. Além disso, triplicamos o número de colaboradores em todas as áreas, o que foi um desafio enorme, pois tratava-se de uma equipe nova para ser treinada em um momento muito crítico.

Quanto tempo levou essa adaptação de estrutura ao novo cenário?

J.A. Começamos as primeiras contratações em abril, e o processo continuou em maio, junho e julho. Essas admissões incluíram médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas, contemplando os profissionais que formam a equipe assistencial da terapia intensiva. Ao mesmo tempo, sempre fomos respaldados pelas recomendações do Ministério da Saúde, das RDCs. O HSP nos acolheu muito bem nesse sentido, apesar das dificuldades financeiras, o que faz muita diferença na ponta – o cuidado com o paciente. Isso porque a sobrecarga de trabalho é muito grande, a complexidade dos casos é cada dia maior, e mesmo com o conhecimento acumulado ao longo do ano lidar com a segunda onda é complexo.

Muitos de nós temos curiosidade. Conte um pouco sobre sua rotina na UTI durante a pandemia.

J.A. Todos os dias entro aqui na UTI paramentada, assim como os demais colaboradores. Sabemos que estamos bem mais expostos do que quem está na rua, então nosso cuidado é redobrado. Levávamos em média mais de 10 minutos para se paramentar no dia a dia. Hoje, é muito mais rápido por causa da prática. Desde o começo nosso lema é “a segurança de um é a segurança de todos”, e nós como equipe de saúde temos que estar seguros para cuidar do paciente. Quando temos um colega de trabalho internado na UTI, a tensão toma conta de nossos corações. Dois enfermeiros nossos já ficaram internados, mas felizmente não integraram os casos mais graves nem ficaram intubados, evoluindo bem e voltando ao trabalho normalmente. Isso foi muito gratificante para a equipe.

12
Profissionais de saúde no Hospital São Paulo. Foto: Alex Reipert.
 
-O que mudou na UTI do HSP com a pandemia?
 
Imagine um paciente da Neurologia que acabou de sofrer um AVC. Ele chega inconsciente na UTI, e somente então fazemos todos os procedimentos, como sedar e iniciar os cuidados intensivos. Quando você sabe que a pessoa não tem consciência do que está acontecendo com ela, sabe que essa pessoa está sendo poupada do sofrimento. Hoje, porém, o que acontece é o seguinte: “Senhor, a gente vai ter que entubar você”. E a pessoa responde: “Bom...deixe eu ligar para minha esposa, então, para eu me despedir”. Por que essa despedida? Porque pode ser que ele consiga melhorar...mas pode ser que não. É angustiante, mais ainda por sabermos que mais de 70% dos pacientes que adentram a UTI morrem, e essa não era a mortalidade usual aqui na UTI do Hospital. Apesar de ser uma UTI de casos graves, esse caso como o do paciente era um exemplo das nossas referências – casos graves, complexos, de politrauma, morte encefálica. Lidar com a morte era parte da nossa vida. Mas com a velocidade com que temos visto, não, nem da forma como temos que lidar com a sensação de impotência. Quando nenhum tratamento ou procedimento tem resposta, quando tentamos tudo o que sabemos, e o paciente não responde ao tratamento”.
 
O que significa “fazer tudo” nesse momento?
 
J.A. O paciente com covid-19 chega na UTI com insuficiência respiratória, e a fala mais comum é “não consigo respirar”. Isso significa que o seu pulmão não consegue trocar o gás carbônico pelo oxigênio. Oferecemos então o melhor produto para aquele paciente, naquele momento: o oxigênio. Iniciamos a oxigenoterapia pelo cateter nasal, usado para administrar oxigênio de baixo fluxo. Não surtindo efeito, partimos para a máscara não reinalante com um reservatório de oxigênio. Caso os níveis de oxigênio no corpo continuem baixos (segundo a medição do oxímetro e do sangue) e o paciente apresente fadiga, partimos para manobras de ventilação não invasivas, como a máscara de com pressão positiva e cateter de auto fluxo, até a intubação e ventilação mecânica. Cada uma delas oferece uma porcentagem específica de oxigênio que esteja acima dos usuais 21% presentes no ar que respiramos. A quantidade de oxigênio oferecida na oxigenoterapia não invasiva deve acrescentar no máximo 15% a esses 20%. Durante esses procedimentos, o fisioterapeuta sempre está presente orientando o paciente sobre exercícios respiratórios. Quem define as quantidades de oxigênio utilizadas é o médico, pois o insumo também é considerado um medicamento, que em excesso pode trazer outros prejuízos.

Quando você deixa o trabalho, segue sua vida normalmente?

J.A. Tenho alguns hábitos já há muitos anos, como acordar cedo, trabalho o dia todo, saio daqui e vou para a academia. Hoje moramos na mesma casa, eu, minha filha de 24 anos e mais três pessoas consideradas do grupo de risco – meus pais e minha avó. Por isso, adotei os cuidados básicos para esse momento, como tirar os calçados antes de entrar em casa, tomar banho logo que chego, separar as roupas com que trabalhei para lavar imediatamente, dar um beijo nos cabelos da minha mãe e do meu pai, higienizar as mãos a todo momento e mesmo dentro de casa manter o distanciamento. Mas não uso máscara em casa, e isso desde o começo, pois aqui uso sistematicamente. Entretanto algo que me ajudou a manter o equilíbrio diante desse cenário foi o autocuidado diário, físico e psicológico. Para mim é uma questão muito forte: meu equilíbrio global tem relação direta com a minha imunidade. Não dou sorte para o azar, então o que eu posso fazer para me cuidar, eu faço. Pratico atividades físicas desde os seis anos de idade, e procurei nunca perder esse hábito. Busco me informar sobre alimentação saudável, medicamentos alternativos e naturais. Além disso, passei a meditar e, nas horas de lazer, faço o que gosto normalmente, sem exageros ou extremismos. Ter uma mente saudável faz com que você consiga enfrentar momentos de crise muito melhor. Por outro lado, entendo que sou uma agente multiplicadora, então se eu mobilizar muito minha vida a ponto de me segregar, tiro de mim e dos outros a oportunidade de compartilhar o conhecimento adquirido nessa vivência, de modo a incentivar as outras pessoas a seguir em frente e adotar os melhores caminhos para lidar com esse momento.

Quais atividades físicas você pratica?

J.A. Faço crossfit há três anos, mas já pratiquei diversos tipos de atividade física. Fiz dança quando pequena, começando com balé, jazz, natação, boxe chinês. O crossfit é uma atividade coletiva que me ajuda muito a superar desafios. Tem elementos que estimulam nossa força, trazendo à tona um vigor que por vezes nós mulheres achamos que não temos. Meus pais introduziram o esporte na minha vida (e na do meu irmão) muito cedo, o que trouxe disciplina e tranquilidade para lidar com a vida.

De que forma você percebe a relação entre o que passa no hospital e a realidade externa?

J.A. A covid-19 é uma doença de mudança de hábitos, em diversas frentes, mas principalmente no que se refere no olhar de um ser humano em relação ao outro. Responsabilidade, como me comporto interfere na vida do outro. Mesmo quando você tem uma manifestação leve da doença, ainda assim é desconfortável. Imagine o que significa perder o olfato e paladar para quem ama comer ou é apaixonado por um perfume? É como se você não estivesse mais vivo. Nos casos graves, pacientes jovens vão embora em três dias! Por trabalhar na terapia intensiva, me acostumei com situações extremas, e ainda assim tem sido angustiante ver o que vejo. Temos perdido pessoas numa velocidade muito grande, temos muitas altas, mas às custas de muito sofrimento.