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Nova geração de imunizantes será capaz de estimular a produção de anticorpos específicos de mucosa, freando a alta capacidade de transmissão do coronavírus

Por Valquíria Carnaúba

Anote mais essa: o corpo humano produz anticorpos diferentes dependendo do local onde os vírus e bactérias escolhem para invadir. O tétano, por exemplo, ataca o nosso corpo pelo sangue, mas a pneumonia avança melhor pelos pulmões. É por isso que existem tipos diferentes de vacinas: para estimular a produção de um (ou vários) anticorpos específicos para cada doença.

Quando a gente fala de vacina contra a covid-19, é para comemorar (e muito) termos tantas opções no momento. Mas você parou para observar como recebeu sua dose? Provavelmente, foi pelo braço, e quando uma vacina é aplicada no músculo, estimula a produção de anticorpos dos tipos IgM e IgG, que circulam livremente no sangue e no plasma.

Porém, os anticorpos ideais para combater doenças respiratórias são os do tipo IgA, produzidos nas mucosas, presentes em grandes quantidades nesses locais e muito mais específicos para atacar patógenos como, é claro, o coronavírus. Diante disso, as vacinas atuais ainda enfrentam o desafio de barrar a grande capacidade de transmissão desse vírus e nos encorajar a largar as máscaras no fundo da gaveta.

Para termos IgA pra dar e vender, é preciso apostar nas chamadas vacinas de segunda geração, como as de spray nasal. Essa lacuna será preenchida pelos novos imunizantes, como o que está sendo desenvolvido pela Unifesp. Em entrevista, o infectologista Celso Granato explica essa questão e fornece as pistas sobre o que pode vir de novidade no combate à síndrome respiratória daqui para frente.

Dr. Celso Granato 12
Celso Granato é médico, professor adjunto aposentado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor clínico do Grupo Fleury. Foto: a4&holofote comunicação/divulgação

V.C. A impressão que temos é que os testes para covid-19 foram muito mais bem aceitos do que as vacinas. Como você percebe isso?

C.G. Você aceitar fazer um teste é, de certa forma, uma manifestação de curiosidade, principalmente por que os sintomas são parecidos com os de outras doenças. A manifestação da covid-19 é muito vasta, e varia de diarreia a insuficiência respiratória. Considerando que cerca de 35% dos infectados são assintomáticos, é natural que isso gere preocupação na sociedade. Mas de maneira geral, o brasileiro adora tomar vacina. É de graça, muitos encaram até como um dia especial.

V.C. Há um argumento comum entre os grupos que se opõe às vacinas - que foram criadas “muito depressa”. Muitos preferem esperar esses imunizantes serem aperfeiçoados, como aconteceu com a vacina contra o H1N1, que hoje de fato provoca menos reações adversas.

C.G. Um dos primeiros trabalhos sobre a efetividade da vacina contra os Sars-CoV foi publicado em...2003! Outro, em meados de 2005. Esses mesmos grupos que saíram na frente da vacinação, especialmente a China (Sinovac) e a Inglaterra (Universidade de Oxford) estavam trabalhando por causa do Sars-CoV-1. Sabe quantos trabalhos foram publicados entre 2002 e 2019 sobre Sars-CoV? 128 trabalhos sobre vacinas, numa época em que nem sabíamos da existência do Sars-CoV-2. Parece que temos vacinas fabricadas há pouco tempo, mas já faz mais de 18 anos que o primeiro Sars-CoV começou a ser pesquisado.

V.C. A confiança na ciência mudou ao longo do tempo? Tomo como base a última pandemia, há 100 anos, de Gripe Espanhola.

C.G. O grande diferencial foi a evolução da ciência. Para dizer a verdade, tivemos uma sorte imensa com a gripe de 1918, pois ela se extinguiu praticamente sozinha. Teve uma ou outra medida da época que adotamos com a pandemia de covid-19, como o uso de máscara. Mas o que mudou nesses 100 anos não é brincadeira. Só para citar alguns marcos, antes não fazíamos cultura de células para estudar vírus e bactérias, um procedimento que surgiu somente na década de 1930 e trouxe a vacina da febre amarela. Até hoje, esse princípio é usado para fabricar outras vacinas, como a da gripe. Nessa época, também não existia microscópio eletrônico, somente o microscópio comum, e por isso não conseguíamos enxergar os vírus. Com essa inovação, veio a biologia molecular, que surgiu em grande medida nos anos 1950 e avançou muito com o aparecimento do HIV. Imagine hoje, pegamos uma coisinha que não enxergamos a olho nu, cortamos só um pedacinho que produz uma proteína, injetamos no paciente e, com isso, ele pode produzir anticorpos e ficar protegido contra várias doenças.

V.C. Sendo tecnologias recentes, não geraram na época a mesma desconfiança da população que presenciamos hoje?

C.G. A vacina da gripe surgiu nos anos 1960, e não mudou muito a tecnologia para sua produção. E existem muitas outras doenças que continuarão sendo combatidas do mesmo jeito. Existe um vírus que ataca crianças pequenas chamado vírus sincicial respiratório (VSR), que provoca uma síndrome respiratória que pode levar à internação e à morte. Garanto para você que, quando começarmos a aplicar as tecnologias incorporadas com a covid-19 no combate a essa doença, logo surge uma vacina que, em outros tempos, não conseguimos desenvolver. A beleza da ciência é que a gente “apanha” muito mas, na hora que abaixa a poeira, a gente vê que o conhecimento pode ser utilizado no combate a outras doenças.

V.C. Isso faz a gente refletir também sobre as doenças que ainda não têm cura e a nossa capacidade “evolutiva” de se adaptar aos novos patógenos. Estamos prontos para esse risco e colocar as vacinas de lado?

C.G. A gente tem aprendido que existem características genéticas que tornam algumas pessoas mais suscetíveis do que outras. Contudo, são processos muito mais lentos na natureza. Certamente, quem sobreviveu a essa pandemia vai passar essa imunidade para as próximas gerações, e aparecerão pessoas naturalmente mais resistentes ao coronavírus. A curto prazo, não é indicado arriscar. Quando temos um “jump”, um pulo interespécie de um vírus, é sempre complexo. Isso aconteceu com o HIV, quando passou do macaco para o ser humano, com o ebola e o Sars-CoV-2. Quando um vírus passa de uma espécie a outra, um trajeto não muito fácil do ponto de vista biológico, ele tem que se adaptar ao novo hospedeiro. Essa adaptação, via de regra, provoca doenças graves. Para o vírus, isso é péssimo, pois se ele mata o hospedeiro, logo menos não tem nenhum hospedeiro para ele. Aí ele tem que mudar para outra espécie. Ao longo do tempo, temos que continuar vacinando até “estabilizar” o vírus.

V.C. E quanto às mascaras e às previsões sobre as novas epidemias previstas por aí?

C.G. Acho que a gente não deveria deixar de usar máscara a curto prazo. Isso por que as vacinas atuais ainda não conseguiram eliminar a transmissão do vírus, somente diminuir número de casos, internações e óbitos. É possível que isso venha com vacinas mais específicas, de segunda geração, como as de spray nasal. Esse tipo de imunização ainda não é comum no Brasil, é mais cara, mas é comum nos Estados Unidos, por exemplo. Os anticorpos que nós produzimos são mais ou menos “locais”. Se damos uma vacina intramuscular, o caso da covid-19, são produzidos muitos anticorpos no sangue, mas faz muito poucos anticorpos no nariz. Mas uma vacina nasal estimula a produção de anticorpos nessa região. Um bom exemplo é, novamente, a poliomielite. Qual a diferença da vacina Sabin da vacina Salk? A Salk é intramuscular, que não interfere na multiplicação do vírus pois ele entra pela boca. A grande sacada da vacina Sabin foi fazer uma vacina que é ministrada na boca, porta de entrada do vírus. Ganhou o Nobel por conta disso e salvou a vida de milhões de pessoas. Com vacinas de spray, a transmissão pode definitivamente cessar.

V.C. O que leva nosso organismo a produzir anticorpos localmente? A circulação dos anticorpos não é homogênea no corpo humano?

C.G. Os locais mais expostos para patógenos são nariz, boca e olhos. O que a natureza fez, então? Criou mecanismos de defesa nessas portas de entrada. Com isso, temos anticorpos de mucosa específicos que não são encontrados no sangue. A hepatite é transmitida pelo sangue, e a vacina intramuscular é altamente eficiente para combater essa doença. Mas para a hepatite A, não funciona tão bem. Tecnicamente, temos os anticorpos IgG e os do tipo IgA (anticorpo produzido nas mucosas), e a distribuição desses anticorpos é feita de forma inteligente pelo nosso organismo a depender da doença que irão combater. A natureza é fantástica!